quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Tal como um avestruz, escondendo a cabeça na areia?


AMARAL, L. A. Sobre crocodilos e avestruzes. In: AQUINO, J. G. Diferenças e preconceito na escola. Summus Editorial. Pág. 19-28.

Antes de mais nada desejo esclarecer o que é um mecanismo de defesa. Trata-se de conceito inicialmente formulado por Freud em 1926, e posteriormente desenvolvido por Anna Freud, Otto Fenichel, José Bleger e outros autores.

Para Bleger (1977), mecanismos de defesa são técnicas ou estratégias com que a personalidade total opera para manter o equilíbrio intrapsíquico, eliminando fontes de insegurança, perigo, tensão ou ansiedade, quando, por alguma razão, não está sendo possível lidar com a realidade.

Por outro lado, Goffman (1982), que nos fala de estigma e das relações mistas, nos lembra que estas são, por definição, relações tensas e ansiógenas.

Quero com isso dizer que nas situações em que entrar realisticamente em pleno contato com a diferença significativa (ou mesmo entrar em conflito com o sentimento de rejeição que ela pode gerar) não é uma possibilidade psicológica imediata, e havendo a necessidade de "fugir" da questão, podemos assumir a postura de avestruz: enfiamos a cabeça na areia para não ver o que não queremos ou não podemos ver.

Ou dito de outra forma: se reconhecer a diferença significativa do outro (ou nossa rejeição a ela) nos causa profundo mal-estar, tensão e ansiedade, uma das possibilidades é o acionamento do mecanismo de defesa da negação,7 o qual pode revestir-se de algumas roupagens específicas: compensação, simulação e atenuação.

No cotidiano usamos certas expressões "clássicas" que ilustram essas três formas de negação. Exemplos delas não faltam em nosso repertório do dia-a-dia.

Ao dizermos (ou até mesmo pensarmos) frases do tipo: "é paralítico mas tão inteligente", "é negro mas tem alma de branco", "é homossexual mas tão sensível"... estamos compensando aquela característica ou condição que consideramos espúria e, portanto, negando-a ao contrapô-la a um atributo desejável — o "mas" denuncia isso.

Dizemos também: "podia ser pior", "não tem uma perna—e podia não ter as duas!", "não é tão grave assim"... Nesse caso, será que não estamos negando, pela atenuação, a especificidade (tipo e dimensão, por exemplo) de dada condição ou característica?

A simulação ocorre quando negamos literalmente a diferença: "é cego, mas é como se não fosse", "é homossexual mas nem parece"... Fazemos “de conta que”.

O fato é que enfiar a cabeça na areia não nos liberta da armadilha relacional (continuamos sofrendo a ansiedade na relação interpessoal), nem facilita a vida do significativamente diferente, seja ele diferente nesta ou naquela condição, esteja ele neste ou naquele contexto—inclusive, e talvez até especialmente, no educacional.

Um pouco mais sobre diversidade/deficiência ou "água mole em pedra dura tanto bate até que fura"

Todos nós, de uma ou de outra forma, já sabemos, um pouco pelo menos, a evolução dos conceitos referidos à condição de deficiência pelas práticas sociais a eles aliadas. Ou seja, já sabemos que, decorrentes dos conceitos em vigência em diferentes momentos, ocorreram movimentos de extermínio, marginalização, confinamento, veneração, temores profundos, omissão, pessimismo, paternalismo exacerbado e explícito, paternalismo camuflado, descrédito, segregação, credibilidade, investimento em educação e reabilitação, extermínio novamente, marginalização, pseudo-integração, integração real, luta pela cidadania...

A indagação maior que se coloca pode ser assim formulada: como contribuir para o avanço do conhecimento nessa área tão impregnada de ambivalência e ambiguidade, tão entranhada de preconceitos, estereótipos e estigma, tão "território de ninguém" e, simultaneamente, tão "pertencente" a tantos proprietários/especialistas?

Claro está que a "mesma" contribuição sempre é possível quando outros são os interlocutores. Porém mesmo assim, em outras ocasiões, como hoje, o desejo de introduzir novas vertentes para reflexão trazia (e traz) consigo a sedução e o desafio do pensar.

Brincando com as ideias, diria que a Educação, como cada um de nós, deve escolher a roupa adequada para os dias frios assim como para os de calor, os alimentos compatíveis com o horário e/ou clima, os comportamentos para as situações de alegria ou de tristeza, as expressões emocionais para momentos públicos ou de intimidade... Enfim, escolher o melhor (para cada um de nós e para aqueles que nos cercam) para um melhor viver.

Voltando ao "água mole em pedra dura tanto bate até que fura", devo confessar que foi fascinante a experiência de pensar sobre esse "ditado", pelas razões que compartilho a seguir.

Quando a expressão me ocorreu referia-se, evidentemente, à ideia de que seria válido voltar, tantas vezes quanto possível, a uma mesma reflexão para que, finalmente, um dia, quem sabe, ela pudesse atravessar as muralhas de pedra dos preconceitos a que estamos sujeitos, como seres humanos que somos e, muitas vezes, sem nem nos apercebermos de sua presença em nós mesmos.

Quanto ao referido aluno: incompetência, pobreza, inclusão em família "desestruturada", deficiência, doença... Quanto ao professor: desinteresse (pela desvalorização do papel social e pelo aviltamento salarial), inadequação da formação, falta de "reciclagem", não investimento em aprendizagem de novas "técnicas" e/ou teorias...

Alguns de nós vêm chamando essas colocações de "culpabilização da vítima".

Passemos agora à discussão sobre o que é deficiência, que divide com outros (muitos) conceitos a representação de fenômeno multifacetado, impregnado de denotações e conotações. Dentre esses muitos, pensemos nas outras diferenças significativas, ligadas, por exemplo, a: religiosidade, homossexualidade, velhice...

Lembremos também que o conjunto formado por conceito/definição de deficiência aponta, inexoravelmente, para os contextos em que tem sido engendrado. Desejo portanto frisar que, ao nos debruçarmos sobre um conjunto conceito/definição, é imprescindível lembrar que essa díade é sempre historicamente datada.

Ou seja, em dado contexto elabora-se um conceito (representando um objeto de uma dada forma), o qual é operacionalmente descrito por uma definição que visa à ampla compreensão daquele, bem como sua divulgação e apropriação pelos receptores previstos.

Essas afirmações prendem-se ao fato de desejar, aqui, enfatizar minha leitura: penso que o conceito de deficiência e sua definição passam por dimensões descritivas e por dimensões valorativas, tendo sempre um caráter histórico concreto: um determinado momento, num contexto socioeconômico-cultural específico.

Passo a compartilhar, embora de forma bastante reduzida, algumas das sugestões nele contidas (OMS/SNR, 1989):

DEFICIÊNCIA (impairment) refere-se a uma perda ou anormalidade de estrutura ou função: Deficiências são relativas a toda alteração do corpo ou da aparência física, de um órgão ou de uma função, qualquer que seja a sua causa; em princípio deficiências significam perturbações no nível de órgão, (grifos meus)

INCAPACIDADE (disability) refere-se à restrição de atividades em decorrência de uma deficiência: Incapacidades refletem as consequências das deficiências em termos de desempenho e atividade funcional do indivíduo; as incapacidades representam perturbações ao nível da própria pessoa, (grifos meus)

DESVANTAGEM (handicap) refere-se à condição social de prejuízo resultante de deficiência e/ou incapacidade: Desvantagens dizem respeito aos prejuízos que o indivíduo experimenta devido à sua deficiência e incapacidade', as desvantagens refletem pois a adaptação do indivíduo e a interação dele com seu meio, (grifos meus)

Tenho, há vários anos, pensado a deficiência, corno fenômeno global, distribuída em dois subfenômenos/ deficiência primária (deficiência e incapacidade) e deficiência secundária (desvantagem).

Em minha visão a primeira delas (a deficiência primária) está remetida a aspectos descritivos, intrínsecos (ou qualquer nome que se queira dar) e a segunda, basicamente, a aspectos relativos, valorativos, extrínsecos...

A deficiência primária pode impedir ritmos e formas usuais de desenvolvimento, mas não a sua ocorrência — o que de fato vem a suceder, muitas vezes, em decorrência das variáveis envolvidas na problemática da "desvantagem" (deficiência secundária). Ou seja, estou referindo-me a questões que apontam para a relativização inerente à própria ideia de desvantagem. Só se está em desvantagem em relação a algo ou alguém! E é na possibilidade de problematização da desvantagem, da deficiência secundária, que repousa a maior contribuição da atual conceituação-definição-nomenclatura — "malgrado" oriunda de um modelo médico.

Em relação à "deficiência" e à "incapacidade" (que, como já dito, entendo como "deficiência primária") não desejo alongar-me, até porque sou ardorosa defensora da ideia de que as deficiências existem (e não são apenas socialmente construídas), assim como existem incapacidades delas decorrentes. É uma questão descritiva: é o olho lesado e o não ver, é a medula lesionada e o não andar...

Mas a que nos remete a própria ideia de "desvantagem", de prejuízo? A peculiaridades intrapsíquicas sim, porém, com certeza, a contingências preponderantemente sociais: as chamadas especificidades socioeconômico-culturais, tais como sistema econômico, organização política, crenças e valores, leituras e interpretações sociais e, em consequência, a um conjunto de ações/reações ao fenómeno deficiência e às pessoas que o corporificam.

Talvez aí esteja, afinal, a verdadeira revolução: a mudança radical dessas interações sociais — até agora tão marcadas pelo maniqueísmo da plenitude versus falha, sanidade versus insanidade, perfeição versas imperfeição, eficiência versus ineficiência: DEFICIÊNCIA?

A questão conceitual (e seus desdobramentos em definições e nomenclaturas) não se limita a mero exercício de retórica. Penso, ao contrário, que a problematização desse aspecto traz subsídios fundamentais para uma outra (e talvez subsequente) temática: a da integração social ou comunitária (como nomeiam diferentes autores) desse abstrato coletivo "crianças com deficiência", expresso nas individualidades que o compõem.

Ou, a partir de outro ângulo, penso que essa discussão pode ir realmente muito além de um exercício de retórica. Penso que, mais do que isso, a questão conceitual pode encaminhar novas formas de interação humana, uma vez que se ponham a descoberto os aspectos intimamente vinculados à desvantagem, especialmente em sua vertente social.

E ainda: cada um de nós pode subverter alguns dos postulados vigentes, revolucionar a mentalidade hegemônica. Essa seria, para além da própria revolução conceitual, a revolução micropolítica, detonada e exercida no cotidiano, nas interações do dia-a-dia — e talvez especialmente no cotidiano escolar.

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